domingo, 14 de abril de 2013

Maria ficheira e a fila do SUS

Conto 
Por Austri Junior

Eram quatro horas da manhã, ouvi vozes altas como se estivessem dentro da minha casa. Eram vozes femininas e vozes masculinas misturadas, atrapalhando o meu sono. Pensei: "De onde estão vindo essas vozes"? Entre as vozes femininas reconheci logo de cara, uma certa voz que sempre chama a atenção pelo seu tom altíssimo e exagerado, pelas besteiras que fala, e principalmente pelas altíssimas gargalhadas. Era a voz da  "Maria ficheira". Maria ficheira é uma senhora muito indiscreta, que toda terça-feira está na fila do SUS, pegando fichas "profissionalmente". Essa senhora possui quatro fortes características: Contar "estórias", fazer fofocas, furar a fila e meter o bedelho na vida das outras pessoas com uma dose muito grande de indiscrição.

Eu mora em frente ao posto de saúde e por isso acabo vendo ouvindo toda a movimentação que emana da da fila do SUS. Muitas pessoas, pensam que morar em frente ao posto de saúde é uma "benção". Eu, tanbém já pensei assim (antes de  receber essa "bênção"). A verdade é que residir em frente ao posto de saúde acaba com a saúde da gente... É muito barulho atrapalhando o nosso sono durante a madrugada. Nos dias de marcação de consulta e nos dias de recolhimento de materiais para exames a fila começa a se formar cedo e as pessoas vão chegando, uma de cada vez e logo temos uma multidão formada, ávidas por conversar, "colocar papo em dia", como se diz por aí... Nos dias de vacinação das crianças, choros e berros se ouvem ao longe, alguns chegam assustar, quando distraídos estamos. Alguns berros e choros incomodam bastante, parece que estão praticando um holocausto com crianças, tamanho é o desespero delas, e das mães também, que gritam com as crianças e brigam com os maridos.

Quem já esteve na fila do SUS, seja em um posto de saúde, em uma policlínica, ou em algum pronto atendimento, sabe bem como é. Ali temos uma grande miscelânea de gentes. Pessoas de todos os tipos: Gentes emburradas e mau-humuradas, gentes desconfiadas, pessoas "comédias", pessoas caladas, pessoas falantes (essas são a maioria). Tem as pessoas que fazem disso um meio de vida, como a Maria ficheira, por exemplo. Tem as velinhas fofoqueiras que em duas ou três horas de espera nos põem a par e nos "atualizam" sobre tudo o que acontecce na comunidade, e sobre tudo o que acontece na vida dos vizinhos, inclusive citando os nomes mesmo que não saibamos nem de quem se trata, muito menos o nome dessas pessoas. Quando dizemos: "Não sei que é esse fulano, ou essa fulana", elas fazem questão de apontar a direção da casa. As velinhas fofoqueiras têm uma necessidade enorme de falar (da vida dos outros), e falam tanto, que nem as suas famílias escapam. Mas há também as "novinhas" fofoqueiras. Aliás, a prática da fofoca na fila do SUS não tem idade nem sexo. A fofoca na fila do SUS é generalizada e vemos ali também, muitos homens muito fofoqueiros, e quanto mais idosos, mais fofocas praticam.

Na fila do SUS os assuntos variam de acordo com a idade, com a escolaridade, com a experiência de vida de cada pessoa: As mães falam muito sobre filhos e crianças, as esposas conversam sobre sobre os seus maridos e conversam muito sobre os desafetos vividos dentro do lar. As pessoas hipocondríacas conversam sobre remédios e doenças e "sabem tudo" sobre o assunto. Conhecem todas as doenças, todos os nomes dos remédios e sabem o nome e os horários de atendimentos de todos os médicos. Tem também os evangelizadores de plantão que se comunicam nos idiomas "crentês" ou "evangeliquês", tentando converter a fila, dando testemunho de si mesmos e sempre com muito convencimento, ao mesmo tempo que dão contra-testemunho jogando lixo no chão, fazendo fofocas, furando a fila, entre outras coisa abomináveis. A Maria ficheira é uma dessas pessoas que se comunicam em "crentês" e "evangeliquês", e está sempre disposta a dar testemunhos ao mesmo tempo em que apresenta um forte contra-testemunho de vida na fila do SUS.

Sempre que vou ao posto de saúde eu quero ficar na minha, ouvindo notícias pelo rádio do celular, com um fone de ouvido, mas a fila do SUS tem as suas particularidades e características próprias e imutáveis, e uma delas é que a privacidade é uma palavra desconhecida, e nada do que façamos, vai mudar isso... As pessoas falantes sempre dão um jeitinho de puxar conversa com as outras pessoas ao seu redor, ou de inserí-laas em suas conversas dirigindo-lhes o olhar, ou balançado a cabeça, fazendo sempre algum sinal como que a perguntar para o outro: "Não é mesmo?"

Acho que as pessoas têm necessidade de falar por vários motivos: Algumas porque não conseguem calar-se, outras porque não têm ninguém para conversar ou ninguém lhes dá atenção, outras porque querem chamar a atenção de todos para sí, outras por falta de sabedoria e discernimento... Em fim, são apenas gentes. Gentes com muitos e variados problemas e frustrações, gentes esquecidas, abandonadas, pobres em várias situações: Pobres de dinheiro, pobres de cultura, pobres  em conhecimento, pobres... São pessoas em sua maioria sofredoras em busca de alento para as suas mazelas, atendimento para as suas doenças, compreenção para os seus problemas. Muitas vezes essas pessoas são mal atendidas e não encontram a solução para os seu problemas, e muitas acabam explodindo o seu mau-humor. Todas essa pessoas são gentes carentes que precisam de atenção e carinho.

Mas que a "Maria ficheira" do meu bairro, aquela que me acorda toda terça-feira de madrugada e me pertuba com as suas falácias quando estou na fila do SUS me irrita, ah, isso sim... Como essa mulher me irrita!