domingo, 3 de março de 2013

O relojoeiro

Conto
Por Austri Junior

O Big Ben soou doze badaladas... Era meia-noite.
Na escuridão da noite fria londrina ouviu-se o ranger de dobradiças antigas e enferrujadas, vindo de uma pesada porta de madeira antiga e de um sobrado velho, cujas paredes eram muito sujas, apresentando algumas trincas. Uma parca sombra masculina projetou-se na parede do prédio em frente. Sombra essa causada pela pobre e fraca luz que vinha do lampião do único poste que havia na rua, e que iluminava toda aquela redondeza. Trajado totalmente com a cor preta, cujo propósito era mesmo confundir-se com a escuridão noturna, e nela camuflar-se, aquela figura cujo rosto não se podia identificar usava uma indumentária composta de terno, cartola e capa. Um detalhe chamava a atenção: A calça e as botas eram próprias para caçadas. Aquela figura sinistra, cujo rosto não se podia ver, caminhava pelas ruas escuras e perigosas dos guetos de Londres, onde nessa hora da noite, não havia mais ninguém nas ruas. As poucas pessoas que ainda podiam se ver a caminhar eram as prostitutas, os bêbados e os mendigos. Entre eles, pessoas mal intencionadas, como os ladrões e os assassinos. Esses não eram tantos, mas eram o suficiente para levar perigo a quem por essas ruas caminhassem. E o nosso misterioso personagem agora fazia parte desse cenário.

O dia mal amanhecera e as pessoas já podiam ouvir a voz do vendedor de jornais, que aos berros anunciava a manchete do dia:

- Extra, extra! Leiam agora: "Mais uma mulher assassinada"!

Mulheres assassinadas na Londres antiga, em geral eram imigrantes, vindas da Rússia e de outros países europeus em crise financeira e ali chegando, essas mulheres muitas vezes optavam pela prostituição, para conseguirem sobreviver. Isso deu inicio a muito problemas sociais. Contudo, esse fato já era um assunto banal e corriqueiro, porque Todos ali já ouviram falar do famoso Jack, o estripador de Londres. As prostitutas sempre foram alvo da ira de maníacos, assassinos, puritanos e moralistas.

A mesma porta de madeira pesada e antiga no mesmo sobrado velho se abrira nessa manhã, revelando a saída de uma figura masculina, trajando um belo terno de linho, branco, e uma cartola preta estava sobre a cabeça do homem. O Sol de primavera iluminava toda a rua, e Mr. Collins, um cidadão muito respeitado, saíra porta a fora, enquanto esta era fechada atrás de si, e caminhava rumo ao centro da cidade, dentro do seu elegante terno de linho branco, na bôca, um lindo cachimbo de marfim, na mão direita uma linda e luxuosa bengala de marfim cravejada com alguns pequenos diamantes. De longe ele podia ouvir os berros do jornaleiro: "Extra, extra..." Ao entrar na rua principal que dava acesso à sua relojoaria, Mr. Colluins checou as horas, no seu relógio de bolso de ouro maciço, 18 quilates. Ao levantar os olhos avistou o jovem e agitado jornaleiro, que de um lado ao outro da rua, continuava bradando:

- "Extra! Leiam nessa manhã: Mais uma mulher assassinada em Londres"!


Mr. Collins chamou o rapazinho e pediu-lhe um jornal, no que foi prontamente atendido:

- Bom dia Mr. Collins!

- Bom dia Charles.

- Está um lindo dia hoje, o senhor não acha?

- Está sim, Charles.

- Aqui está o seu jornal, senhor.

- Obrigado. Respondeu o relojoeiro, colocando a luxuosa bengala em baixo do braço esquerdo, e enfiando a mão direita no bolso da calça, apanhou uma moeda e entregou ao jovem.

- Mr. Collins...

- Sim, Charles.

- O senhor já vendeu aquele relógio?

- Ainda não. Ele ainda está lá.

- O senhor não me faria um desconto? Já juntei quase todo o dinheiro, e só está faltando um shilling...

- Não! O relógio está la e será de quem o comprar primeiro.


O relojoeiro virou-se, caminhou até a sua loja, abriu a porta, adentrou ao recinto, abriu um armário que estava trancado a chave, pendurou dentro dele a linda bengala com seus diamantes nela cravejados, trancou novamente o móvel e voltou a guardar a chave no bolso direito do paletó. Caminhou até um canto da loja, de onde podia ver a porta de entrada, e o movimentação na rua através da vitrina, então, pôs-se a ler o jornal. Ao ler os detalhes do assassinato da madrugada anterior, narrados pela polícia, deparou-se defronte a uma importante informação: "Devido as proporções dos ferimentos, constatamos sem sombra de dúvida que o assassino desferiu os golpes com uma faca, usando a mão esquerda, como das outras vezes", disse o inspetor de polícia na entrevista ao repórter. Diante desse fato, recostou a cabeça no encosto da sua cadeira de balanço antiga, feita de Pau-Brasil, e disse para si mesmo:

- Uma a menos! Limparei essa cidade da imoralidade, mesmo que tenha que gastar toda minha fortuna. Afinal estou pagando muito bem ao "Canhoto"...


Mal o relojoeiro acabou de pronunciar a sua frase, o cachimbo de marfim caiu da sua mão, os olhos se fecharam e a cabeça pendeu para o lado esquerdo, Um infarto fulminante lhe tirara subitamente a vida. Ele não viveu para "limpar" as ruas de Londres, e agora, a sua fortuna não servirá mais ao moralismo e não mais será a juíza e a carrasca da sociedade. O Criador interrompera os  atos malignos de Mr. Collins e o chamara a prestar contas de todos eles.